sábado, 5 de maio de 2007

Florbela Espanca, A alma em Expansão



Florbela Espanca foi uma poeta de extraordinária sensibilidade, nascida em 1894 em Vila Viçosa, Portugal. Desde criança fazia versos originados de uma necessidade interior, que segundo os críticos, mesmo com erros de ortografia eram avançados em relação à sua idade. É o processo de criação para atender às pressões do inconsciente e que levaram Florbela a uma permanente angustia de nunca conseguir expressar-se na proporção em que a força erótica de sua alma oculta o exigia. Como diz seu critico José Regis, em estudo de 1952: “...Nem o Deus que viesse ama-la, sendo um Deus, lograria satisfazer a sua ansiedade...
Sempre suas manifestações poéticas estavam aquém da necessidade desse outro ser, um inconsciente imaginativo a impulsionar os sentimentos desde dentro. Mas ela avançava sem preocupar-se muito com a poesia que circulava nos meios literários a seu redor. As revistas e movimentos como “Orfeu”, “Presença”, e outros, nada significavam de muito importante para ela e nisso o próprio modernismo passou desapercebido em sua obra. Florbela poetava por uma necessidade intrínseca e seu estilo não se detinha em acompanhar escolas e modas da época.
Era, portanto, um vulcão de paixões inexplicáveis com fortes elementos do inconsciente coletivo, aflorando, além da expressão de sua alma traduzida pela metáfora do feminino, que no caso de Florbela era um fato plasmado através do narcisismo, utilizando-se para tanto de sua própria imagem. Resulta interessante notar essas sinalizações destacadas por José Régio: “...viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atingem tão vibrante expressão...” Mais adiante em relação ao feminino “...Também de certo aparecem na nossa poesia autenticas poetisas, antes e depois de Florbela. Nenhuma, porém até hoje, viveu tão a sério um caso tão excepcional, e, ao mesmo tempo, tão significativamente humano...tão expressivamente feminino...”
Ainda o próprio autor do estudo nos revela, nesta significativa citação, como aflorava o inconsciente coletivo veiculado por sua poesia. Vejamos:“...mais tarde se revelará na sua poesia, como uma verdadeira intuição obsessiva e não o capricho literário que também é, o pós-sentimento de ter vivido em outros mundos, em outras vidas, em outros países: de ter sido não só quaisquer das figuras romanescas sonhadas pela fantasia dos poetas ou vitralizadas pela história e a lenda – princesas, infanta, monja – mas ainda árvore, flor, pedra, terra; senão nuvem, som, luz...”










Na penumbra do pórtico encantado




De Bugres, noutras eras, já vivi;




Vi os templos do Egito com Loti;




Lancei flores na Índia ao rio sagrado








Mas José Régio, na mesma analise sobre Florbela, dá uma escorregada ao querer interpretar seu narcisismo como contradição de personalidade da poeta em relação à procura ou exaltação do seu amor. Utilizando certa forma pejorativa, mal percebe, esse crítico, o impressionante processo de expressão espontânea do feminino inspirador, que a poeta mulher faz surgir por imagens mal compreendidas quando conceituadas como narcisismo. Indo da incompreensão à censura, vejamos o que nos fala Régio a respeito:
“…Todavia não creio que em tais sonetos se exprima o singular de Florbela. Embora fazendo sonetos de amor até ao fim, e não obstante a feminilidade que já vimos dar tom ao seu narcisismo, lembremo-nos, continuemos a lembrar-nos que Florbela gosta demasiado de si mesma, comprazendo-se em cantar “os leves arabescos” do seu corpo, a sua “pele de âmbar” os seu “olhos garços”, sobretudo as suas mãos que tanto veste de imagens. Pormenor impressionante: O que em si própria mais parece agradar-lhe – as mãos e os olhos – é o que também mais canta no amante amado. Dir-se-ia que ainda nele se espelha e se procura. E sem dúvida poderemos pensar que, em vários de seus sonetos considerados de amor, ela é que é o verdadeiro motivo; e o pretenso amado um pretexto.Ora, narcisismo e egolatria não parecem que sejam muito favoráveis ao dom de amar. ”
Isto significa não entender que a verdadeira poesia e a procura de um algo muito poético sejam uma coisa só, e que a alma procura sentidos para encontrar-se quase sempre em contatos que lhe despertem a sensibilidade por intermédio do amor, pois é esse amor a energia erótica, através de uma intensa fabricação de libido, de dentro, que Florbela precisa desprender e captar ao mesmo tempo na consciência, para produzir sua obra. Seria uma pequena ilusão encontra-la de forma permanente no sexo oposto, mas a incitação à possibilidade inicial da paixão leva a poeta a procura-la nos homens, desiludindo-se, nos três casamentos desfeitos em apenas 15 anos. Sem esquecer que existe a necessidade de criar o pólo oposto para estabelecer a tensão necessária à criação, pois a energia nasce da relação dinâmica entres esses opostos.Compreende-se o anúncio insistente da procura, e também as formas sinceras de imaginar tal encontro como formas de amor, ou na imagem do seu feminino, ou nas tentativas de ternura, inclusive em relação ao seu amado irmão. E isso é a poesia de Florbela, anunciação da insatisfação por não encontrar-se. No soneto seguinte podemos apreciar essa poesia:












EU




Eu sou a que no mundo anda perdida




Eu sou a que na vida não tem norte,




Sou a irmã do Sonho, e desta sorte




Sou a crucificada... a dolorida...








Sombra de névoa tênue e esvaecida,




E que o destino amargo, triste e forte,




Impele brutalmente para a morte!




Alma de luto sempre incompreendida!...








Sou aquela que passa e ninguém vê...




Sou a que chamam triste sem o ser...




Sou a que chora sem saber porque...








Sou talvez a visão que Alguém sonhou,




Alguém que veio ao mundo pra me ver




E que nunca na vida me encontrou!












Florbela Espanca, em vida, conseguiu editar o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923), deixando inéditos Charneca em Flor e Relíquia, por não ter encontrado editor. As críticas em geral não acertaram esse compasso espiritual de Florbela, quando a analisam “...desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social. Inserida em seu mundo pequeno burguês...(observação citada por Rolando Galvão). Uma analise insensível, por não levar em conta o mergulho da poeta na criação individual, pois, dessa forma conseguiria sua profunda inserção na comunidade, como de fato veio acontecer posteriormente. Florbela fez sua poesia em sonetos, pouco se preocupando com o estilo modernista, como já dissemos, porque a essência de seu fluxo poético encaixou-se melhor nessa forma (e, por acaso, não seria igualmente essa forma de cadência, ritmo e melodia a indicada por seu ativo imaginário do inconsciente?). Mesmo, nessa técnica escolhida, despreocupou-se com a formalidade do verso; precisava dizer urgentemente ao mundo o que borbulhava dentro dela.
No EU que transcrevemos na integra, vemos a alma que se derrama num caudal fazendo-a sofrer dolorosamente...por ser irmã do sonho...é sacrificada e dolorida. Ao não conseguir encontrar a expressão adequada no consciente das realidades de sua vida, o “...destino amargo, triste e forte a impele brutalmente para a morte...”, isto é, busca essa alma, supostamente verdadeira, fora do mundo real dos fatos objetivos, e dentro do sonho, o único que a poeta mais conhece e vive. Na sua realidade das coisas, sua figura não é vista e nem compreendida (chamam-me triste sem o ser). E ela própria não consegue identificar o porquê disso. No caso dela é um sofrimento real e não apenas um fingimento poético, com a conseqüente representação artística.
Esse sofrimento real leva à tragédia real, que mais tarde se apresentará no suicídio aos 36 anos. Se fosse fingido, o sofrimento desembocaria em arte representativa, tragédia que se realiza na obra estética do drama, através do símbolo. Florbela é poesia bruta, pura, como a explosão dos astros, e é por isso também extremamente vidente, ao perceber, desde seu mundo oculto um Alguém articulador (que vem de algum lugar obscuro?), manejando os mecanismos de seu emergir espontâneo. Alguém a provocar-lhe sede, mas que não lhe dá água de beber “...Alguém que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou.”, visão extraordinária do inconsciente vivo, onde ela dialoga com o simbolo difuso, diríamos.E notemos como tenta, antecipadamente, prever a cristalização desse encontro, um ir além do metafísico, num dos últimos sonetos de sua vida:








DEIXAI ENTRAR A MORTE








Deixai entrar a morte, a iluminada,




A que vem para mim, pra me levar,




Abri todas as portas par em par




Como asas a bater em revoada.








Que sou eu neste mundo?




A deserdada, A que prendeu nas mãos todo o luar,




A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,




E que, ao abri-las não encontrou nada!








Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?




Entre agonias e em dores tamanhas




Pra que foi, dize lá, que me trouxeste








Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido




Somente o fruto das entranhas




Dum lírio que em má hora foi nascido!...












Mas antes dessa ida, Florbela tentou experimentar “... prender nas mãos todo o luar...”. E procurou-o no amor aos homens, mas achou o sexo brutal; ali não estava o luar, o erotismo em que procurava comover-se. Esse pólo extremo sempre existiria, com o intuito de provocar energia, mas todo pólo que predomina sobre o outro desequilibra o processo de criação. Florbela sempre que cedia à tentação de optar por um dos lados, estagnava o processo vital da criação de libido.








AMAR








Eu quero amar, amar perdidamente!




Amar só por amar: Aqui...Além...




Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...




Amar!Amar! E não amar ninguém!








Recordar? Esquecer? Indiferente!...




Prender ou desprender? É mal? É bem?




Quem dizer que se pode amar alguém




Durante a vida inteira é porque mente!








Há uma primavera em cada vida:




É preciso canta-la assim florida,




Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!








E se um dia hei de ser pó, cinza e nada




Que seja a minha noite uma alvorada,




Que me saiba perder...pra me encontrar...








Florbela vivia à procura de sua alma interior, na beleza imaginada de seu feminino e na vivência de sua paixão interior; seu amor, que não se realizaria com os homens.








Procurei o amor, que me mentiu,




Pedi à Vida mais do que ela dava;




Eterna sonhadora edificava




Meu castelo de luz que me caiu. (Inconstância)




....................................................








Quando se defrontava com o feminino de sua alma achava-se de uma beleza indescritível, não cabia dentro de sua própria formosura.








Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...




Pele doirada de alabastro antigo...




Frágeis mãos de madona florentina...




-Vamos correr e rir por entre o trigo – (Passeio no Campo)





Mas ao defrontar-se com a realidade, quase desconhecida e a ela desacostumada, exagerava em dizer que seu corpo era feio diante do espelho. Mesmo que não o fosse, a visão não correspondia a seu estado de sonho, cujo conceito do belo estava além da realidade.





Até agora eu não me conhecia.



Julgava que era Eu e eu não era




Aquela que em meus versos descrevera




Tão clara como a fonte e como o dia.








Mas que eu não era Eu não o sabia




E, mesmo que o soubesse, não o dissera




Olhos fitos em rútila quimera




Andava atrás de mim e não me via! (EU II)




..........................................................








E ao final Florbela, frente ao dilema de ser ou não ser, terminava correndo para o refúgio da própria poesia, seu ser transcendente, que corresponderia à unidade desses dois contrários: o símbolo permanente de sua possível salvação.








SER POETA








Ser poeta é ser mais alto, é ser maior




Do que os homens! Morder como quem beija!




É ser mendigo e dar como quem seja




Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!








É ter mil desejos o esplendor




E não saber sequer que se deseja!




É ter cá dentro um astro que flameja,




É ter garras e asas de condor!








É ter fome, é ter sede do Infinito!




Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim




É condensar o mundo num só grito!








E é amar-te assim perdidamente




E seres alma e sangue e vida em mim




E dize-lo cantando a toda a gente.





O sofrimento vinha dessa incompatibilidade entre o corpo real e o corpo da alma. Florbela precisaria de um meio termo, não como média, mas como síntese simbólica ou filosófica. Talvez a filosofia oriental fosse-lhe propícia naquele momento de domínio da incompreensão total, exercida sobre ela até pela cultura circundante. Pois, o meio em que se locomovia era fruto das máscaras do valor aparente, das conquistas violentas, da supervalorização física, a nostalgia dos feitos colonizadores, que em Portugal (sem excluir outros paises colonialistas) oprimia a alma de seus poetas profundos (veja-se Fernando Pessoa, morto por alcoolismo, ou mesmo Sá Carneiro, levado ao suicídio)
Em outra cultura mais espiritual, Florbela, provavelmente teria sobrevivido, conseguindo que sua psique encontrasse parcerias externas, na condução de seu erotismo ao caminho da harmonia, ou o equilíbrio entre a alma insaciável e o corpo real, encaixando-se conteúdo e forma, em sua vida como na poesia, misturando a imaginação com a vida real.
Desse País inexplicável, Florbela, consegue chegar a ponto de perceber o quanto a indecifrável e frustrada história “da pátria” se mistura com os enigmas de sua alma, que a levarão a sucumbir por não suportar mais esse desejo insaciável e desconhecido, não consumado. Vejamos no poema:





NOSTALGIA








Nesse País de lenda, que me encanta,




Ficaram meus brocados, que despi,




E as jóias que pelas aias reparti




Como outras rosas da Rainha Santa!








Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!




Foi por lá que as semeei e que as perdi...




Mostrem-me esse País em que eu nasci!




Mostrem-me o Reino de que eu sou infanta!








Ó meu País de sonho e de ansiedade,




Não sei se esta quimera que me assombra,




É feita de mentira ou de verdade!








Quero voltar! Não sei por onde vim...




Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra




Por entre tanta sombra igual a mim!





A poeta, ao refletir sobre essa trajetória, percebe seu sonho misturado a um vago sonho coletivo, que para ela foi “...um sonho alado erguido em horas de demência...”. Não há realidade palpável, onde possa firmar-se; não vem o Desejado e nem o Infante, duas figuras; a do seu desejo e a do desejo da imaginação da coletividade (através de uma máscara coletiva de feitos e heróis). Aquilo que seria o transcendente - sua própria poesia - já não encontrava meios psíquicos de faze-la viver, porque ela própria já não possuía mais recursos para sustentar-se na vida das imagens. Assim diz:





SONHO VAGO:








Um sonho alado que nasceu um instante,




Erguido ao alto em horas de demência




Gotas de água que tombem em cadencia




Na minha alma, tristíssima, distante...








Onde está ele o Desejado? O Infante?




O que há de vir e amar-me em doida ardência?




O das horas de mágoa e penitencia ?




O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?








E neste sonho eu já nem sei quem sou




O brando marulhar de um longo beijo




Que não chegou a dar-se e que passou...








Um fogo-fátuo rútilo, talvez...




E eu ando a procurar-te e já te vejo!




E tu já me encontras-te e não me vês!












3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Irana,
Gostei muito da proposta do seu blog. Iniciar com Florbela Espanca foi tudo de bom, espero continuar tendo gratas surpresas com essa. Kisses,

Irana disse...

Obrigada Isabel pelo comentário e incentivo. Abraços

Irana

Unknown disse...

Gostei muito...dá para entender melhor o trabalho de Florbela Espanca.Vlw!!!